Entre polêmicas e entendimentos, política de participação popular é lei em contagem

Fagner Ribeiro Sena
Política de participação

Considerações prévias

Nas breves notas que seguem, pretendo tomar as palavras tomando como minha a discussão feita por Ivanir Corgosinho fez sobre a legislação da participação popular em Contagem, publicadas neste blog no último dia 09 de dezembro. O texto cumpriu integralmente o objetivo de explicar o estado da arte dessa matéria em tramitação no legislativo municipal, além de trazer conceitos, explicitar o alcance do projeto do ponto de vista da institucionalização da participação popular como política pública de Estado.

Nesse sentido, pretendo relatar os acontecimentos que vieram depois da publicação, polêmicas que ganharam força nas redes sociais e que incidiram nos debates no legislativo municipal, nos dois turnos de votação, e no resultado final da aprovação. Tentarei também extrair alguma lição desse processo que, nos dez anos que acompanho a Câmara Municipal de Contagem, foi o mais polêmico e que suscitou questões de fundo da contemporaneidade.

As coisas dentro do lugar

Antes de adentrar no relato e nas polêmicas, quero fixar dois entendimentos:

1. O Projeto de Lei n. 025\2023, que “Institui a Política Municipal de Participação Popular e Cidadã – PMPPC e o Sistema Municipal de Participação Popular e Cidadã de Contagem – SMPPC no âmbito do Município” foi uma iniciativa da Prefeita Marília Campos que expressa compromisso de campanha registrado no Tribunal Regional Eleitoral em 2020, construído no dia a dia em três anos de gestão.

2. Coube à Câmara Municipal de Contagem discutir e deliberar sobre o tema, com plena liberdade para fazer alterações na proposta, de acordo com a correlação de forças, a dinâmica interna e o pensamento médio da casa.

Conclusões parciais: A Prefeita Marília, ao enviar o projeto de lei para o legislativo, cumpriu seu compromisso. Apresentou uma proposta completa, complexa e objetiva, que culminará em uma legislação moderna, inovadora, que compreende o desenho de uma política, com diretrizes e objetivos, de um sistema, que integrará os diversos canais de participação social, um conselho gestor, responsável pela governança do sistema e para que a política de participação seja de todos os órgão do executivo. E, por último, consignará orçamento para que os Conselhos Regionais decidam, como já ocorreu, sobre intervenções necessárias em cada território. A Câmara Municipal, por sua vez, cumpriu o seu papel de discutir e deliberar sobre a proposta, realizando as alterações e aprimoramentos que julgou necessários. Concluído o processo com êxito, segue uma breve discussão sobre as polêmicas entorno do projeto de lei.

As coisas fora do lugar

O Projeto de Lei n. 025\2023 foi votado em dois turnos na Câmara Municipal, nos dias 12 e 14 de dezembro. No dia anterior a votação em primeiro turno, ou seja, dia 11 de dezembro, assistimos a uma movimentação nas redes sociais, oriunda de lideranças de extrema-direita e de um vereador da oposição, que chamava atenção para um aspecto do PL que soou estranho, o que eu chamo de algo fora do lugar. Diziam que a Câmara Municipal votaria um projeto que “autoriza a utilização da linguagem neutra” ou que abre precedente para o uso nos órgãos da Administração Municipal. Para tanto, indicaram dois dispositivos do PL onde estariam a suposta “autorização” ou “precedente”, são eles:

“Art. 4º São diretrizes gerais da Política Municipal de Participação Popular e Cidadã — PMPPC:
(…)
IV – o direito à informação, à transparência e ao controle social nas ações públicas, com uso de linguagem simples e objetiva, consideradas as características e o idioma da população a que se dirige;”

e

“Art. 5º São objetivos da Política Municipal de Participação Popular e Cidadã — PMPPC, entre outros:
(…)
VI — incentivar o uso e o desenvolvimento de metodologias que incorporem múltiplas formas de expressão e linguagens de participação popular e cidadã, por meio da internet, com a adoção de tecnologias livres de comunicação e informação, especialmente, softwares e aplicações, tais como códigos fonte livres e auditáveis, ou os disponíveis no Portal do Software Público Brasileiro;”

Em primeiro lugar, são dispositivos que estão nas partes que tratam das diretrizes e dos objetivos da proposição. Diretrizes são guias, rumos, caminhos para se chegar a determinados objetivos. Objetivos são os lugares onde se deseja chegar com a implementação de uma política pública determinada.

Vejam que no inciso IV do Art. 4º, é uma diretriz que reproduz conceitos que podemos encontrar na grande maioria das legislações que instituem políticas públicas. O “direito à informação” e o “controle social das ações públicas” são previsões constitucionais. A “linguagem simples e objetiva” é uma diretriz geral para a comunicação oficial (da administração pública). Já considerar “as características e o idioma da população a que se dirige”, cito os exemplos práticos trazidos no debate pelo vereador Bruno Barreiro (PV), e pela vereadora Moara Saboia (PT). Bruno citou a inclusão de pessoas portadoras algum tipo de transtorno que necessitam do uso de sinais para a comunicação. Moara, por seu turno, citou a grande quantidade de imigrantes que moram e atuam em Contagem e que são beneficiários e uma série de políticas públicas desenvolvidas pela gestão Marília Campos, uma delas é a publicação de materiais institucionais nas suas respectivas línguas.

Já o inciso VI do Art. 5º fala, quando estabelece como objetivo “incentivar o uso e o desenvolvimento de metodologias que incorporem múltiplas formas de expressão e linguagens de participação popular cidadã, por meio da internet…” está dizendo da necessidade de explorar ao máximo as possibilidades que o ambiente digital proporciona para os processos participativos. O ambiente virtual e tecnológico é múltiplo e oferece inúmeras possibilidades de desenvolvimento de ferramentas que facilitam que as pessoas participem de consultas e tomadas de decisão em grande escala. A gestão da Prefeita Marília Campos está na vanguarda desses processos e é um ponto de não retorno. Especificamente o termo “linguagem de participação popular e cidadã” significa que assim como outras políticas públicas possuem seus signos e códigos, assim também a participação os possui e precisam ser considerados pela política objeto da legislação em debate.

Tudo, menos um debate sobre língua(gem)

Permitam-me algumas breves considerações sobre a suposta discussão sobre a língua e seus usos. Um dos grandes consensos que existem sobre as línguas é que elas mudam com o tempo. A variação é constitutiva das línguas. E são um sem número de fatores que levam as línguas a mudarem: sociais, culturais, geográficos; não tenho dúvida que hoje o principal fator de mudança na língua é a comunicação em rede. Um dos grandes mestres que tive na academia escreveu que “nenhuma língua precisa mudar, mas todas elas mudam.” O que foi corrigido pelo seu orientador de tese: “se todas as línguas mudam, então elas têm que mudar!” A síntese é que a mudança é um imperativo ou condição de existência das línguas. No entanto, as mudanças não ocorrem por força de lei, e nem as leis são capazes de impedir as mudanças. São processos sociais que geralmente duram muitos anos. Outros são momentâneos.

Quero dizer com isso que o uso da linguagem “neutra” um dia será incorporada à norma padrão do português brasileiro? É possível, mas pouco provável. Sobre o assunto, o linguista Sírio Possenti (Unicamp) afirma que não é possível prever se ocorrerá e, caso ocorra, não é possível prever em qual tempo.

No ano de 2022, um pesquisador do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul analisou 34 proposições legislativas em câmaras municipais, assembleias legislativas e no Congresso Nacional que tratavam do assunto. Analisou o objeto das proposições com as justificativas e chegou três conclusões: 1) nenhum projeto propunha ou incentivava o uso ou adoção da linguagem “neutra”, mas o contrário, proibia; 2) nenhuma das propostas e justificativas guardavam qualquer relação com o aspecto propriamente linguístico do tema; 3) o pano de fundo de todos as propostas eram eminentemente político, girando entorno de questões de gênero, religiosas e afins.

O debate sobre o PL n. 025\2023, ocorrido na Câmara de Contagem, nesse aspecto, corrobora as conclusões do pesquisador: não incentivava, instituía ou proibia o uso da linguagem “neutra”, até porque ficou claro que não era esse o objeto, e todos os argumentos contrários foram de natureza política, ideológica e religiosa.

A língua(gem) – que fique claro – serve para comunicar e também para não comunicar. É palco privilegiado para manifestação política, principalmente em uma sociedade desigual, racista, machista e homofóbica como a nossa. Daí que esses segmentos que lutam por igualdade de direitos e por reconhecimento têm no uso da língua não algo normativo ou mero instrumento de comunicação, mas um terreno de luta política.

Afinal, por que o medo da participação popular?

Outro ponto de polêmica nos debates do PL n. 025\2023 no legislativo municipal foi o orçamento destinado às intervenções escolhidas pelos Conselhos Regionais. O PL previa um mínimo de um milhão anual para cada Conselho, ou seja, oito milhões. Registra-se que o programa para o qual o orçamento era destinado, expresso no anexo da Secretaria de Planejamento era “Mobilidade e Infraestrutura Urbana”, o que não deixa qualquer dúvida sobre o destino final dos recurso, que são as pequenas obras e intervenções escolhidas pelos Conselheiros, conforme já ocorreu.

Os argumentos contrários ao orçamento para os Conselhos foram poucos e nunca indo direto ao ponto. O principal é que a Prefeita estava antecipando o processo eleitoral, colocando dinheiro para apoiadores do governo.

Vejam bem, são quase 400 conselheiros e conselheiras, titulares e suplentes, eleitos em 120 plenárias, mobilizando mais de dez mil votantes. Lideranças de todos os tipos: comunitárias, políticas, religiosas, empresariais, de mulheres, jovens… Foi a expressão da política que ocorre todos os dias, nas comunidades, fora das instituições políticas. Emergência de novas lideranças que se descobriram ou redescobriram como representantes dos anseios de seus lugares e segmentos. É isto que assusta; é isto que dá medo; e é isto que ocorre me Contagem com a Prefeita Marília Campos: o povo representando seus anseios e sendo acolhido pelo poder público.

Quem pode e quem não pode participar e falar

A duas questões de fundo – imbricadas – nos debates sobre o PL n. 025\2023, fora e dentro da Câmara Municipal de Contagem, são:

1. Quem pode e quem não pode participar da definição das prioridades e dos das políticas públicas e das ações do poder público, inclusive da definição do orçamento.

2. Em que pese não ser pauta do governo (pro isso não constava no PL), é quem pode e quem não pode falar.

As coisas voltam para o devido lugar

A votação do PL em primeiro turno obteve um placar de 14 votos favoráveis e 4 contrários com a apresentação de uma Emenda de Lideranças (esclareço que essa modalidade de emenda, quando assinada pela maioria dos líderes partidários representados na Câmara, fica incorporada à proposição legislativa) com a assinatura de 20 vereadores, exceto a da vereadora Moara Saboia.

Se na votação em primeiro turno as coisas ficaram fora de lugar, no segundo turno, considero que elas voltaram para o lugar, conforme o subtítulo. A começar pelo placar que foi para 17 favoráveis ao PL e 3 contrários. Abstenção, falta ao plenário e um contrário engrossaram o placar em favor da proposta. Explico.

A emenda aprovada retirou termos que causaram reação nas redes sociais e a disseminação de notícias falsas sobre o PL. Também fixou o orçamento em no máximo um milhão por Conselho e colocou no texto da lei a destinação dos recursos exclusivamente para obras. Esse foi um ponto importante e está dentro das competências da Câmara Municipal fazer ajustes e modificações às proposições do Poder Executivo.

No entanto, as falas de vereadores e vereadoras ao justificarem o voto demonstram que as alterações no PL representaram apenas um aspecto da mudança nos rumos do debate. Em primeiro lugar, as falas foram marcadas por um contundente rechaço à disseminação de notícias falsas e de deturpação acerca das matérias em apreciação pela Câmara Municipal e sobre as próprias prerrogativas da casa legislativa. Uma espécie de autodefesa, mas que possui relação com as questões mais complexas da vida moderna, especialmente em uma sociedade dominada pelo ambiente digital, que, no caso do Brasil, não dispõe de regulamentação adequada, inclusive para salvaguardar a integridade das pessoas e do próprio Estado Democrático de Direto.

Por fim, o debate sobre a participação popular foi reposto nos termos de um compromisso ético e legítimo da Prefeita Marília Campos, que marca a sua trajetória política, conforme ressaltaram quase todos os vereadores que fizeram uso da palavra, e que, portanto, a Câmara renovou voto de confiança no projeto liderando pela Prefeita.

Conclusões

A. Os debates sobre o PL n. 025\2023 nos coloca o desafio de pensarmos (nós militantes, organizações democráticas e progressistas), refletir sobre a incidência do que eu chamaria de ataques cognitivos repentinos, direcionados a segmentos determinados, requerendo esforços para construir formas de defesa prévia, seja através do mapeamento desses grupos para estabelecer canais de diálogo, formação (como letramento digital) e informação diretas.

B. O saldo do processo é positivo para a gestão da Prefeita Marília Campos que conseguiu avançar nessa pauta que é cara e fundamental para o governo, fortaleceu a relação de confiança e cooperação mútua com o legislativo municipal.

C. Se a intenção de quem tentou deturpar o objeto do PL n. 025\2023 era criar tensões entre a Prefeita Marília Campos com as lideranças do segmento evangélico da Cidade, o resultado foi o inverso, pois a verdade veio à tona, ficando claras as reais intenções de Marília que é ampliar os canais de diálogo com a população, incluindo cada vez mais o segmento evangélico que cumpre um papel social importantíssimo para quem mais precisa.

D. A política e a verdade venceram.

Fagner Sena é dirigente do PCdoB de Contagem, assessor na Secretaria de Governo e Participação Popular da Prefeitura de Contagem, bacharel e licenciado em letras.

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